Peixamento: soltar peixes sem autorização é crime ambiental e desperdício de dinheiro
17/10/2025
(Foto: Reprodução) Soltar alevinos irmãos nos rios compromete populações nativas por conta da baixa variedade genética
Márcio Campos / TG
Se não tem peixe, o rio está “doente”! Só que existe uma crença de que soltar alevinos é o melhor remédio. Mas e se esse “remédio” fosse apenas um “placebo”, ou pior, algo “tóxico” que agravasse a condição do “paciente”?
O peixamento, como é chamada essa introdução de espécies com a intenção de repovoar lagos e rios, muitas vezes é motivado por um senso comum de que a técnica apresenta resultados positivos. No entanto, para diversos especialistas, esse “tratamento” não é eficaz para um rio “doente”. Não é só soltar peixe, sem embasamento científico, que você “cura”, pelo contrário, a doença pode se agravar.
A equipe do Terra da Gente ouviu pesquisadores que apontam problemas na soltura de alevinos. Vamos explicar também, em que casos o peixamento pode ser uma estratégia de conservação.
Crime ambiental
A intenção pode até ser boa, mas se não houver uma avaliação técnica pelo órgão ambiental competente, quem faz a soltura de peixes está cometendo um crime.
“Um cidadão ou até mesmo uma prefeitura, quando compra alevinos em pisciculturas, ainda que sejam de espécies nativas, para soltar nos rios, está cometendo um crime ambiental, embalado na crença de que está ajudando o meio ambiente”, explica Carla Natacha Marcolino Polaz, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ICMBio.
Recuperar a matas ciliares traz muito mais efeitos positivos ao rio , explica pesquisador
Márcio Campos / TG
A pesquisadora também é coordenadora do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (CEPTA), em Pirassununga (SP). “A autorização para a soltura de organismos aquáticos é competência do IBAMA. A maior parte dos peixamentos feitos hoje em dia é ilegal, porque não possui as devidas autorizações”, reforça Carla Polaz.
A Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI) já emitiu uma nota técnica, assinada por pesquisadores e instituições, criticando o “mito” da conservação por meio de peixamentos usados como pretexto para conservar estoques naturais de peixes. A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) prevê penas de reclusão e multa para quem soltar espécies sem autorização.
Baixa variedade genética e sem adaptação
Geralmente, essas solturas são feitas com alevinos (peixes jovens), que foram comprados em pisciculturas e ambientes controlados para a criação de pescados.
“O principal objetivo nesses locais é a produção e a engorda de peixes destinados ao consumo, o que é muito diferente da produção de organismos para serem reintroduzidos na natureza e contribuírem para a perpetuação das espécies. Nesse sentido, há muita desinformação sendo difundida sobre peixamentos”, explica a pesquisadora Carla Polaz.
De onde vêm os peixes soltos na natureza? São da mesma família? Perguntas importantes para um repovoamento de espécies nativas, mas que são ignoradas por quem faz o peixamento ilegal.
“Numa piscicultura tradicional, não há preocupação se todos os peixes produzidos são irmãos, simplesmente porque o objetivo não é o reforço populacional. Agora, em termos de conservação ambiental, se soltarmos somente peixes irmãos, corremos o risco de contaminar geneticamente as populações nativas. Pensando em fazer o bem, fazemos o mal”, complementa Carla.
Carpas estão entre as espécies mais soltas ilegalmente
Gzen92 / Wikimedia Commons
Nesta discussão precisamos evocar o naturalista Charles Darwin e a sua teoria da seleção natural, segundo a qual os organismos mais adaptados ao ambiente têm maiores chances de sobreviver e deixar descendentes.
“O peixe que é produzido na aquicultura não está adaptado às condições naturais; ele está acostumado com uma temperatura e condições físicas da água mantidas sem variação. Muitos alevinos não sobrevivem por conta disso: eles não passam por um processo de seleção natural. Na aquicultura, eles não têm predadores, não têm doenças e nem parasitas; quando são soltos, em poucos dias morrem no rio. Fazer isso é simplesmente jogar dinheiro fora”, explica Jean Vitule, coordenador do Laboratório de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Introdução de espécies exóticas
A nota da SBI também aponta os riscos da soltura de peixes exóticos. “A ausência de critérios científicos, como não considerar a origem e ocorrência natural das espécies, resulta em recorrente soltura de espécies não nativas, como por exemplo, tilápias (Oreochromis niloticus e Coptodon rendalli), carpas (Cyprinus carpio e Ctenopharyngodon idella) e pangas (Pangasianodon hypophthalmus)”, cita o texto.
A entidade também reforça que os peixamentos são feitos de forma irresponsável, sem levar em consideração as consequências desastrosas ao ambiente. “A maioria dos peixamentos é feita com espécies exóticas, por questões políticas. Você vai soltar um peixe de outra bacia, de outro país, que vai competir, predar, trazer doenças e eliminar todas as espécies nativas do lugar, inclusive diminuir a quantidade de peixes daquele lago ou rio”, explica Jean Vitule.
Tilápia é um dos peixes mais soltos ilegalmente no país
Nelson Almeida/AFP
A SBI destaca que estudos mostram que a soltura de peixes não nativos causa diversos impactos negativos nos ecossistemas naturais. “É importante enfatizar que a introdução de espécies, especialmente àquelas que se tornam invasoras, está entre as cinco principais ameaças à biodiversidade e ecossistemas, em âmbito global”, reforça a nota.
O Relatório Temático sobre Espécies Exóticas Invasoras, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), estima que os prejuízos decorrentes das invasões somam entre R$ 11 e 15 bilhões para a economia brasileira.
Falta de estudos
Para que servem os peixes, apenas para alimento? A nota da SBI também questiona o principal argumento ouvido em quase todos os cantos do país: aumentar a oferta para o consumo.
“No entanto, essa prática parte de uma lógica simplista e equivocada, que assume que a simples adição de novos indivíduos resultará em aumento de abundância e biomassa, mas desconsidera efeitos colaterais que podem levar ao desequilíbrio do ecossistema”, diz a nota.
Essas solturas de alevinos, quase sempre, são feitas sem critérios. “Não tem um objetivo relevante, esse é o problema. É necessário, antes de tudo, que seja feito um estudo minucioso para responder às questões importantes: é preciso? quando é preciso? Para quê? Se não, você investe muito dinheiro, às vezes recursos públicos, para pouco resultado, ou, resultado que quase nunca foi medido efetivamente, em lugar nenhum”, reforça Jean.
Quando uma pessoa está doente, o primeiro passo é procurar um médico para identificar a doença. Mas, quando um rio está “doente”, geralmente isso não acontece.
“Às vezes o problema é uma indústria jogando esgoto; nesse caso, por que soltar alevinos? Eles vão morrer. Primeiro, você precisa ter o diagnóstico certo para tratar a ‘doença’. Com um monitoramento a longo prazo, é possível identificar, ou não, a necessidade de peixamento. Pode ser que somente com a recuperação da mata ciliar, você resolva o problema, então, nesse exemplo, soltar peixe seria simplesmente um ‘placebo’ caro”, complementa o pesquisador.
Quando a soltura pode ser feita?
O documentarista de natureza e doutor em Ecologia José Sabino, explica que existem situações excepcionais, de caráter técnico e devidamente justificadas, em que as ações de manejo com espécies nativas podem ser consideradas. “Em outros grupos de vertebrados, por exemplo, há iniciativas de refaunação, voltadas à restauração de populações locais extintas ou reduzidas”, afirma.
O detalhe é que, entre os pesquisadores, nem sempre o peixamento é a primeira opção para evitar a extinção de um peixe. O ICMBio e o CEPTA, por exemplo, trabalham com espécies ameaçadas e utilizam as técnicas de reintrodução de animais nativos somente após uma rigorosa avaliação.
Soltura de peixe-boi no Amapá, feita pelo Ibama, ICMBio e Exército
Vinícius Mendonça/Ibama
“Nem todos os peixes ameaçados de extinção precisam ser reproduzidos e soltos. Há uma série de critérios técnicos que são levados em consideração, como por exemplo, a qualidade genética das matrizes e dos filhotes”, completa Carla Polaz.
Para os pesquisadores, é fundamental considerar, na soltura de peixes, a distribuição geográfica natural das espécies, a avaliação sanitária dos animais que serão manejados, além da estrutura e diversidade genética das populações envolvidas. “Somente com base nesse tripé: ciência, legalidade e precaução; é possível garantir que ações de manejo contribuam, de fato, para a conservação, e não para a ampliação dos riscos à biodiversidade”, ressalta Sabino.
Todas essas ações fazem parte de um manejo integrado, um tipo de trabalho que une especialistas de várias áreas e leva em conta questões ambientais, jurídicas e econômicas.
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